Uma década é o tempo que o Partido Socialista (PS) considera necessário para que o Serviço Nacional de Saúde (SNS) recupere das medidas políticas adotadas pelo governo de Pedro Passos Coelho, nos últimos quatro anos. No Programa de Governo, o PS compromete-se a revogar muitas das decisões da anterior administração. Desde logo, a tabela de atos sujeitos a pagamento de taxas moderadoras, em vigor desde o passado dia 1 de outubro, que introduz a obrigatoriedade do “pagamento de taxas moderadoras na interrupção de gravidez (IVG) quando for realizada, por opção da mulher, nas primeiras 10 semanas de gravidez”.
Refira-se que a alteração à aplicação das taxas moderadoras estava já contemplada em projetos de lei do BE, PS, PCP e PEV com discussão agendada para dia 19 no Parlamento, tendo sido decidido em Conferência de Líderes que, em caso de rejeição do programa do Governo PSD/CDS-PP no dia 10 – que se veio a verificar – a eventual apresentação do programa de um outro Governo teria prioridade sobre todos os outros agendamentos, o que também viria a acontecer.
Se a revogação da taxa moderadora na IVG surge “preto no branco” no Programa de Governo socialista, já não é tão claro que com a revogação da taxa serão também revogados os diplomas conexos, aprovados quase em simultâneo pelo anterior executivo.
Entre eles, a primeira alteração à Lei n.º 16/2007, de 17 de abril, sobre exclusão da ilicitude nos casos de interrupção voluntária da gravidez, proteção da maternidade e da paternidade, que veio instituir alguns procedimentos que passaram a ser obrigatórios nas instituições de saúde onde se realize IVG. Entre os quais, o que determina que na primeira consulta para efeitos de IVG, é
fornecida à grávida “informação clara, verbal e escrita, sobre os apoios sociais existentes, incluindo os subsídios de parentalidade a que tem direito por efeito da gravidez e do nascimento”. Apoios que, sublinha a norma, “podem ser de natureza pública ou privada desde que oficialmente reconhecidas, ajudas monetárias ou em espécie”.
O mesmo diploma institui ainda que deverá ser dado à grávida “o direito de apresentar as dificuldades, estudadas as circunstâncias que ditam o recurso ao aborto, nomeadamente quando resulte de violação dos direitos laborais ou violação de direitos fundamentais, por forma a, sempre que possível, remover tais obstáculos, com apoios concretos”.
Ao abrigo do mesmo diploma, os centros de saúde, unidades de saúde familiar, serviços de ginecologia/obstetrícia e conservatórias do registo civil passaram também a fornecer a todas os utentes “informação escrita sobre o valor da vida, da maternidade e paternidade responsáveis, nomeadamente quanto a cuidados devidos ao nascituro e criança na primeira infância”.
Outra das medidas cuja revogação não se encontra inscrita no programa do Governo de António Costa é a que institui que se esgotados todos os argumentos de “dissuasão” previstos na norma a mulher decidir avançar para a IVG, será obrigada, durante o período de reflexão, a ter acompanhamento psicológico e também por um técnico de serviço social.
Ainda relativamente ao enquadramento legislativo que conduziu à fixação de taxas moderadoras na IVG, o programa do novo executivo não esclarece se irá revogar o decreto-lei (aprovado no mesmo dia), que determina que as empresas condenadas por despedimento ilegal de grávidas, puérperas e lactantes vão ficar impedidas de beneficiar de subsídios ou subvenções públicos durante dois anos.
Para além da revogação da taxa – fixada pelo anterior executivo em 7,5 euros – aplicada em situações de IVG, o Programa socialista, que já incorpora as medidas resultantes das negociações do PS com o Partido Comunista Português (PCP), com o Bloco de Esquerda e com “Os Verdes”, prevê ainda reduções das taxas moderadoras apicadas aos utentes do SNS em função dos rendimentos bem como a “eliminação das taxas moderadoras de urgência sempre que o utente seja referenciado”, uma “regalia” que já hoje usufrui, sempre que o utente é referenciado às urgências pelos cuidados de saúde primários (CSP).
Contemplada no Programa com o objetivo expresso de “reduzir as desigualdades entre cidadãos no acesso à saúde” inscreve-se também a “reposição do direito ao transporte de doentes não urgentes tendo em vista garantir o acesso aos cuidados de saúde de acordo com as condições clínicas e económicas dos utentes do SNS”.
Outro conjunto de medidas inscritas no programa do Governo do PS para a área da Saúde é o que pretende reforçar o poder do cidadão no SNS. Um objetivo que passa pela implementação de um “Sistema Integrado de Gestão do Acesso – SIGA, que facilite o acesso e a liberdade de escolha dos utentes no SNS, nomeadamente no que diz respeito a áreas onde a espera ainda é significativa”.
O novo modelo pretende facultar aos cidadãos, de forma progressiva, a liberdade de escolherem em que unidades desejam ser assistidos, com respeito pela hierarquia técnica e pelas regras de referenciação do SNS. Um direito que a atual legislação já prevê, mas que na prática não é realizável dada a extrema carência de recursos, humanos e técnicos, nos serviços. De facto, na esmagadora maioria das regiões, as instituições do serviço público não têm qualquer margem de manobra para receber utentes de fora da sua área de influência. Aliás, em quase todo o território, milhares de utentes aguardam vez para serem inscritos em listas de médicos de família, por consultas de especialidade e pela realização de meios auxiliares de diagnóstico e terapêutica.
Para os socialistas há que “repor o equilíbrio famílias-Estado no financiamento da Saúde. Os atuais 32% a cargo das famílias têm que ser progressivamente revertidos para valores que não discriminem o acesso, nem tornem insolventes as famílias”.
No seu programa, o governo de António Costa aponta “o colapso sentido no acesso às urgências” como a “a marca mais dramática do atual governo”. Para inverter a situação, os socialistas prometem “recuperar o funcionamento dos hospitais intervindo a montante, através da expansão e melhoria da capacidade da rede de cuidados de saúde primários e a jusante, na execução do plano de desenvolvimento de cuidados continuados a idosos e a cidadãos em situação de dependência”.
É “fundamental relançar a reforma dos cuidados de saúde primários”, cuja descontinuidade é apontada como “um dos principais erros dos últimos anos”, que interrompeu um processo de reforma “que se revelou uma importante melhoria da qualidade e da eficácia da primeira linha de resposta do sistema, uma resposta mais centrada no cidadão” e mais eficiente.
Para inverter a situação, fica a promessa de serem criadas nos quatro anos de legislatura 100 novas unidades de saúde familiar, assegurando por esta via a atribuição de médicos de família a mais 500 mil habitantes.
A assunção da necessidade de recuperar a centralidade dos CSP no sistema de saúde obrigará a uma expansão e melhoria da sua capacidade. Uma meta que será atingida através da dotação deste nível de cuidados com um novo tipo de respostas, nomeadamente, meios auxiliares de diagnóstico e de terapêutica, bem como pelo reforço das áreas de intervenção, através do apoio complementar em áreas como a Psicologia, a Oftalmologia, a Obstetrícia, a Pediatria e a Medicina Física e de Reabilitação.
Ainda em sede de CSP, o novo executivo pretende adotar uma abordagem integrada e de proximidade da doença crónica através da criação de um programa de prevenção para a gestão integrada da doença crónica, cobrindo a hipertensão, a diabetes, a doença cardiovascular, a doença oncológica e ampliando a cobertura do SNS nas áreas da Saúde Oral e da Saúde Visual.
Presente em todos os programas de governo das últimas duas décadas fica também a promessa de garantir que todos os portugueses terão um médico de família atribuído até ao final da legislatura.
Para melhorar os cuidados secundários, os socialistas apresentam no seu programa as mesmíssimas propostas que a “coligação PáF” levou ao parlamento, onde foram chumbadas liminarmente. Que aliás eram, grosso modo, as mesmas que nos últimos 20 anos surgem nos programas de governo dos partidos do “arco da governação”. Um conjunto de lugares comuns com pequenas nuances de redação onde não faltam a “melhoraria da gestão dos hospitais, da circulação de informação clínica e da articulação com outros níveis de cuidados e outros agentes do sector”.
Como também se prioriza a resolução dos muitos problemas que enfrentam as unidades, como a existência de consultas não especializadas, urgências não urgentes e doentes retidos para lá da fase aguda da doença. Uma mudança que implicará, defendem os redatores do programa, um melhor planeamento e incentivos à mobilidade dos profissionais.
Para a melhoraria da gestão dos hospitais, o governo compromete-se a reformar a organização interna e o modelo de gestão, “tendo como exemplo inspirador as unidades autónomas de gestão (UAG), apostando na autonomia e na responsabilização da gestão e na aplicação de incentivos ligados ao desempenho”. Por outro lado, lê-se no documento, será necessário “promover a avaliação externa independente das experiências hospitalares existentes em regime de parceria público-privada (PPP) no sentido de habilitar tecnicamente a decisão política em função da defesa interesse público”.
Saúde Pública: uma aposta de que se conhecem apenas linhas gerais
“O Governo valorizará a Saúde Pública enquanto área de intervenção, para a boa gestão dos sistemas de alerta e de resposta atempada dos serviços, o diagnóstico de situações problemáticas e a elaboração, com a comunidade, de planos estratégicos de ação, assegurando que os perfis e planos locais de saúde são construídos de forma a potenciar os recursos, valorizando as pessoas”, lê-se no programa do novo executivo. De que forma? Através da criação de um “Programa Nacional de Educação para a Saúde, Literacia e Autocuidados, preparando e apoiando prestadores informais em cuidados domiciliários, prevenindo a diabetes, obesidade, promovendo a saúde mental e o envelhecimento saudável bem como a utilização racional e segura do medicamento”. A que se junta a intenção de implementar os planos locais de saúde em cumprimento do Plano Nacional de Saúde (PNS) e reforçar a vigilância epidemiológica, da promoção da saúde, da prevenção primária e da prevenção secundária”.
Em sede de Saúde Pública, fica também a promessa de revitalização do “Programa de Controlo das Doenças Transmissíveis para enfrentar as novas epidemias, a recrudescência de infeções conhecidas e a resistência múltipla aos antibióticos; promover medidas de prevenção do tabagismo (alargando o acesso a consultas de cessação tabágica), de alimentação saudável (alimentação coletiva em escolas e ambientes de trabalho) e de prevenção do consumo de álcool e dos demais produtos geradores de dependência; recuperar a importância, no contexto do SNS, da Rede Nacional de Saúde Mental e a avaliação e atualização do Programa Nacional de Vacinação”, lê-se no documento, a que o nosso jornal teve acesso.
Melhorar a governação do SNS, obtendo mais e melhores resultados dos recursos disponíveis, ou seja, aumentar a eficiência do SNS é outro objetivo traçado pelo novo executivo. Uma meta que se pretende atingir através da melhoria dos instrumentos de governação do sistema. Para tal, advogam, é necessário um “reforço da capacidade do SNS através da alocação dos recursos humanos, técnicos e financeiros adequados, para alcançar objetivos concretos de redução do tempo de espera no acesso aos cuidados de saúde, assim como para exames e tratamentos, de forma a assegurar cuidados de saúde de qualidade, com segurança e em tempo útil”.
Necessário será, também, aperfeiçoar o atual modelo de contratualização dos serviços, “introduzindo incentivos associados à melhoria da qualidade, eficiência e equidade dos serviços, inseridos nos contratos de gestão”. Um objetivo indissociável do reforço da autonomia e da responsabilidade dos gestores do SNS e das unidades prestadoras de serviços e da clarificação das funções de acionista, financiador, regulador e prestador dentro do SNS, terminando com as ambiguidades derivadas de sobreposições de várias funções.
Será ainda necessário evoluir progressivamente para a separação dos sectores através da criação de mecanismos de dedicação plena ao exercício de funções públicas no SNS.
Redução das ineficiências e redundâncias no sistema, prevenindo a desnatação da procura e a deterioração da produtividade e da qualidade no sector; introduzir medidas de transparência a todos os níveis, com divulgação atempada da informação relativa ao desempenho do sistema; reduzir progressivamente as situações geradoras de conflitos de interesses entre os sectores público e privado, incluindo as relações com a indústria farmacêutica e reforçar os mecanismos de regulação através da clarificação das competências e dos papéis dos diferentes intervenientes em cada setor de atividade, são outras das medidas que irão ser implementadas no terreno para uma boa governação.
No sector do medicamento, a primeira aposta do novo governo é na rede nacional de farmácias de oficina, “enquanto agentes de prestação de cuidados, apostando no desenvolvimento de medidas de apoio à utilização racional do medicamento e aproveitando os seus serviços, em articulação com as unidades do SNS, para nelas ensaiar a delegação parcial da administração de terapêutica oral em oncologia e doenças transmissíveis”, informa o documento.
Nesta área, o novo executivo compromete-se também a promover de uma política sustentável de modo a conciliar o rigor orçamental com o acesso à inovação terapêutica. Uma meta que passa pela revisão dos mecanismos de dispensa e de comparticipação de medicamentos dos doentes crónicos em ambulatório e pela promoção do consumo de genéricos cuja quota de mercado, em valor, os socialistas desejam ver atingir os 30%, “tendo em conta a margem para a baixa de preço que subsiste”.
[Fonte: Grupo Cooprofar-Medlog]